A diabetes é uma epidemia silenciosa e debilitadora que tem recebido uma atenção redobrada nas últimas décadas por parte da Medicina. Este trabalho pretende realizar uma análise sobre o aparecimento da diabetologia social em Portugal, centrado no segundo quartel do século XX. Primeiramente pretende-se perceber a génese desta área médica, tendo por base o trabalho desenvolvido pelo médico Ernesto Roma em Lisboa. Segue-se uma análise focada no rastreamento das correntes de pensamento médico que influenciaram a diabetologia portuguesa e por último pretende-se perceber como foi organizado o modelo de assistência aos diabéticos nos primeiros tempos da sua existência.
Diabetes is a silent and debilitating epidemic that has received increased attention in recent decades by Medicine. This work intends to carry out an analysis of the emergence of social diabetology in Portugal, centered in the second quarter of the 20th century. Firstly, it is intended to understand the genesis of this medical area, based on the work developed by the physician Ernesto Roma in Lisbon. This is followed by an analysis focused on tracking the currents of medical thought that influenced Portuguese diabetology and, finally, it is intended to understand how the model of assistance to diabetics was organized in the early days of its existence.
A diabetes é uma doença crónica que atualmente está no top 10 das causas de morte em todo o planeta. Por ser uma ameaça à saúde global a Organização Mundial de Saúde tem como meta a redução de 30% de mortes prematuras devidas a esta doença até 2030. Contudo, as preocupações médicas com esta doença afirmaram-se sobretudo nos inícios do século XX, até porque anteriormente a esse período a diabetes era uma doença pouco frequente. Com as alterações dos padrões de consumo alimentar nos países industrializados a diabetes, tipo 2 ou insulino-resistente, passou a ter maior destaque na epidemiologia de vários países.
Nos Estados Unidos da América surgiu a diabetologia social
No centro dessa revolução terapêutica e do nascimento da diabetologia social em Boston esteve um médico português. Inicialmente visando fazer estudos de pós-graduação em Ética na Universidade de Harvard, Ernesto Roma assistiu em 1922 e 1923 à emergência desta área médica, tendo, absorvido os conhecimentos e modernos modelos de assistência.
Em 1923, Ernesto Roma regressou a Portugal na posse de conhecimentos e métodos de tratamento modernos, dedicando-se a estabelecer as bases da diabetologia social em Portugal. A ideia de fundar uma associação para assistir os diabéticos pobres tornou-se possível em 1926, criando na Associação Protetora dos Diabéticos Pobres (APDP) uma verdadeira escola de diabetes que rapidamente se estendeu ao resto do país.
Deve referir-se que são escassos os estudos sobre a história da diabetes em Portugal e sobre a própria receção da insulina. Sobre a diabetologia e a história da endocrinologia em Portugal refiram-se os estudos de Ismael Vieira
Este artigo centra-se na análise da génese da diabetologia social em Portugal como área médica e social com base no trabalho realizado pelo médico
No início do século XX, em Portugal, era pouca a informação que circulava acerca da diabetes e da sua terapêutica. Nessa época, a diabetes era uma doença que passava despercebida nas estatísticas obituárias oficiais, pelo escasso número de óbitos existentes (pela raridade da doença ou pelas dificuldades de diagnóstico da época), de tal modo que somente a partir de 1931 a doença passou a figurar no «Anuário Estatístico de Portugal» (
Em 1806, Manoel Pereira da Graça, Doutor em Medicina pela Universidade de Coimbra, escreveu um «Tratado da Diabetes», onde pretendia fazer um “estado da arte” sobre a diabetologia do seu tempo, denunciando as teorias erradas perfilhadas pelos médicos seus contemporâneos e concluindo que “a Diabetes é uã daquelas [doenças], sobre o qual os nossos conhecimentos estão ainda tão atrasados, que se ignora a sua natureza, e curativo” (
Abel Jordão, doutorado pela Universidade de Paris e professor da Escola Médico-cirúrgica de Lisboa, foi outro médico que se dedicou ao estudo da diabetes. Na sua tese doutoral «Considérations sur un cas de diabète» (
As teses de final de curso médico-cirúrgico, ditas teses inaugurais das antigas Escolas Médico-cirúrgicas de Lisboa e Porto, constituem geralmente fontes dignas de estudo. Não obstante, no campo da diabetologia pouco contribuíram para o avanço científico no período anterior ao século XX, limitando-se a replicar os conhecimentos em voga na época
Nos inícios do século XX, anteriormente à descoberta da insulina, deve mencionar-se dois estudos dignos de nota. O primeiro trata-se da tese doutoral de Elísio Coimbra realizada na Faculdade de Medicina do Porto, com base em casos observados no Hospital Geral de Santo António, e cuja principal conclusão foi de que a diabetes “A diabete não tem um tratamento específico” (
Nos inícios do século XX, a comunidade científica internacional sabia que o pâncreas era a sede da doença e que as ilhotas de Langerhans eram as responsáveis pela segregação da insulina, uma hormona que permitia o metabolismo do açúcar. Apesar dos vários aportes e pistas que a ciência médica da primeira metade do século XIX veio dar ao problema da diabetes, a doença continuava a ser um mistério. Foi preciso chegar a meados do século XIX para que uma área do saber médico em expansão, a fisiologia, começasse a dar os primeiros frutos para se aclarar determinados aspetos desta patologia. Em 1848, Claude Bernard realizou um conjunto de descobertas sensacionais, percebendo que o suco pancreático tinha uma função digestiva e que o fígado tinha uma função glicogénica (
Nos finais do século XIX alguns médicos preconizavam a opoterapia com extratos de pâncreas, como Edouard Laguesse, Emmanuel Hédon, George Zuelzer ou ainda Israel Kleiner (
Foi neste contexto que Ernesto Roma, um jovem médico português e veterano da Grande Guerra, teve um contacto internacional com a diabetologia social norte-americana, o que viria a mudar a sua inclinação inicial para a psiquiatria e neurociências. Após ter terminado o curso de Medicina na Escola Médico-cirúrgica de Lisboa/Faculdade de Medicina em 1913, com a tese «Microcefalia», iniciou carreira médica no Hospital Escolar de Santa Marta em Lisboa onde exerceu funções de assistente de Anatomia e segundo assistente de Patologia Interna, Clínica Médica, Terapêutica e Especialidades Médicas, trabalhando com Francisco Pulido Valente e, sobretudo, com Carlos Bello de Moraes, que o viria a aconselhar a fazer especialização em Ética no Estados Unidos da América (EUA) com Richard Clarke Cabot (
Cabot criou e liderou o primeiro departamento hospitalar de serviço social nos EUA (
A génese da diabetologia social em Portugal esteve ligada, nos seus inícios, às atividades clínica e educativa do médico Ernesto Roma. Em 1922, este médico rumou a Boston, nos EUA, para estagiar no
No essencial, Ernesto Roma teve contacto com a área emergente do Serviço Social, cujo principal mentor foi Richard Cabot, o supervisor de Roma, e com a primeira escola de diabetologia no mundo iniciada por Elliott Joslin - a
O regresso de Ernesto Roma a Portugal traduziu-se no despontar da diabetologia clínica e social. No Hospital de Santa Marta e na clínica privada pôs em prática as bases do tratamento e educação dos diabéticos que aprendera em Boston e foi mais além ao criar a Associação Portuguesa dos Diabéticos Pobres (APDP) em 1926, com a qual iniciou a diabetologia social. Mais do que uma associação destinada a assistir os diabéticos carenciados revelou-se um espaço de investigação sobre a doença e de formação dos profissionais de saúde portugueses dedicados à diabetes
A diabetologia como área médica dedicada ao estudo, tratamento e prevenção da diabetes remonta aos finais do século XIX e inícios do século XX. O aparecimento e diferenciação de áreas médicas em especialidades nos finais do século XIX esteve ligado não só ao volume do saber médico acumulado como à estrutura social onde a Medicina era praticada. Por um lado, um conhecimento médico mais profuso, científico e sistemático e, por outro, novos modelos de viver e de trabalhar nas sociedades contemporâneas potenciaram o aparecimento de especialidades e subespecialidades que permitiam estudar, tratar, assistir e prevenir as doenças próprias das sociedades ocidentais ou ocidentalizadas.
Queremos com isto dizer que nos inícios do século XX houve modificações importantes na morbilidade ocidental que, segundo
O advento e o desenvolvimento da diabetologia enquadram-se neste panorama mais alargado, tanto de desenvolvimento das ciências endocrinológicas e da nutrição como ainda nas transformações socioeconómicas das sociedades ocidentais nos inícios do século XX. Superadas as questões clínicas principais ao nível da anatomopatologia e a fisiopatologia da diabetes, o assunto premente da Medicina era o tratamento da diabetes, o que veio a originar duas escolas distintas.
De um ponto de vista mais conservador encontravam-se os médicos que defendiam que a insulina era um novo meio terapêutico, o que não invalidava as aprendizagens anteriores como a dietoterapia específica, baseada numa restrição calórica, e os preceitos higiénicos aplicados aos diabéticos. De um ponto de vista mais liberal estavam os que acreditavam que a diabetes era uma patologia devida à carência de insulina, consequentemente os doentes podiam comer tudo sem restrições, bastando apenas acertar com a dosagem precisa de insulina, o que implicava fazer tábua rasa dos conhecimentos e das experiências terapêuticas anteriores (
A descoberta da insulina em Toronto, por Frederick Banting e Charles Best em 1921-1922, constituiu um marco decisivo na terapêutica da diabetes, estando esta descoberta a par da descoberta da penicilina e da estreptomicina, considerada por muitos como medicamentos miraculosos (
A orientação mais conservadora estava representada por médicos como Frederick Allen, dos quais Ernesto Roma colheu alguns métodos de trabalho e modalidades dietoterapêuticas. Os tratamentos dieté ticos racionais da diabetes eram usados desde o século XVIII, por médicos como John Rollo, John Camplin ou Frederick Pavy, baseados em dietas hipocalóricas e no jejum, como forma de controlar a glicosúria dos doentes (
Noutro estudo copublicado em
A partir da descoberta da insulina surgiu uma orientação mais liberal encabeçada por Frederick Banting, que veiculava a ideia de que os diabéticos podiam comer de tudo, já que era apenas necessário acertar na dose correta de insulina. Esta visão foi bem acolhida, sobretudo, pelos pediatras que podiam retirar as crianças diabéticas do estado de subnutrição em que se encontravam (
A descoberta e a aplicação da insulina no tratamento da diabetes na década de 1920 veio provar a cronicidade da doença, implicando que a insulinoterapia estivesse na interceção com outros preceitos terapêuticos como a dieta, o exercício físico, os cuidados com as infeções, o protocolo medicamentoso, entre outros (
Nesta interseção de diferentes lógicas terapêuticas esteve Elliott Joslin
Porém, o grande legado de Joslin concretizou-se no campo da educação dos diabéticos, tanto em doentes como em profissionais de saúde. A complexidade de que se revestiu a terapêutica da diabetes, após a descoberta da insulina, levou a uma domesticação dos cuidados médicos, tendo o doente um papel relevante no autodiagnóstico e tratamento na esfera doméstica. Como defende
A preocupação com a educação dos diabéticos surgiu bem cedo quando Joslin iniciou a sua prática clínica e fundou em Boston a
Primeiro, promover a educação dos diabéticos, ensinando-lhes regras de vida, higiene, autoinjecção de insulina, recolha de urina, confeção de refeições, entre outras valências, já que a sua filosofia era “teaching is cheaper than nursing” (
A educação era compreendida como um conceito e intervenções alargadas, já que os novos diabéticos eram ensinados pelos médicos, enfermeiros e incluso mantinham contactos com os diabéticos veteranos, que tinham um papel importante no reforço da adoção de estilos de vida saudáveis, ao mesmo tempo que eram um suporte psicológico relevante pela partilha de histórias de vida bem sucedidas (
Em segundo lugar, a prestação de cuidados médicos e de enfermagem em regime de ambulatório, minorando os custos com os cuidados de saúde em hospitais ou clínicas gerais mais onerosas, bem como ter acesso a cuidados específicos pela especialização destas instituições (
O terceiro objetivo passava pela promoção da investigação diabetológica em múltiplas vertentes, desde a organização dos registos médicos, produção de estudos estatísticos e elaboração de protocolos de tratamento (
Adepto do aprender fazendo, Joslin preconizava a adoção de novos métodos no tratamento ambulatório dos doentes, enfatizando a educação e os cuidados à cabeceira dos doentes, o que permitia reduzir os custos no tratamento hospitalar como também envolvê-los com seu o tratamento e condição (
Em 1918 foi publicada a primeira edição do «A diabetic manual for the mutual use of doctor and patient» com o objetivo de o médico ter uma ferramenta para educar os doentes e permitir um tratamento adequado sem necessidade de assistência médica direta, porque, segundo
O espaço de atuação da medicina clínica no campo da diabetologia revelou-se insuficiente para lidar com uma doença crónica com várias e gravosas complicações associadas. No tratamento da diabetes seria por si só suficiente a perícia clínica? A educação dos doentes deveria realizar-se estritamente no espaço da consulta e dirigida pelo médico? Foram estas as questões colocadas nos inícios do século XX por alguns médicos norte-americanos, entre eles Richard Cabot.
Desde o exórdio da medicina social em meados do século XIX, a doença nos humanos não era vista apenas como um fenómeno biológico que ocorria na natureza. Pelo contrário, a doença humana era mediada e modificada pela atividade social e pelo ambiente cultural que essa atividade criava (
Neste contexto há que destacar o trabalho pioneiro de Richard Cabot, na criação do serviço social em contexto hospitalar, para apoio aos doentes em ambulatório. Cabot acreditava que a medicina hospitalar se tinha divorciado do contexto social da doença, ao mesmo tempo que o trabalho médico e de enfermagem se realizava essencialmente nas instalações hospitalares, não havendo um seguimento dos doentes nos seus lares (
Numa obra de grande importância médico-social publicada pela primeira vez em 1909 e com republicações sucessivas - «Social Service and the Art of Healing» - Richard Cabot defendia que vários problemas de saúde pública tinham origem nas condições de vida da população como a pobreza, a imoralidade, a ignorância, a superlotação das casas, as condições de trabalho, etc., defendendo um trabalho conjunto entre o médico e um grupo emergente de trabalhadores, os Trabalhadores Sociais ou Assistentes Sociais, que ti nham um papel importante na deteção dos problemas sociais, como má nutrição, ambientes conspurcados, alcoolismo, acidentes laborais, doenças sociais como a tuberculose entre outros (
Tecendo críticas aos médicos do seu tempo, Richard Cabot acusava os médicos de estarem interessados sobretudo nos casos clínicos (que ele considerava de natureza acidental) e não no plano de fundo das doenças preveníveis. Chamou à atenção para o papel determinante dos trabalhadores sociais na dinamização de grandes campanhas contra a tuberculose, contra o leite conspurcado, por uma lei alimentar ou pela criação de uma escola de Higiene nos EUA (
Na mesma época e na mesma cidade ocorreu também um avanço importante na formação das enfermeiras especialistas em diabetes, surgido no contexto do
Num ambiente educativo estimulante, as enfermeiras aprendiam cuidados específicos no tratamento de diabéticos, insulinoterapia e técnica de injeção, manuseamento do vestuário do diabético, calorimetria, dietética e nutrição, educação dos diabéticos e suas famílias (
No primeiro quartel do século XX ficaram definidas as bases da diabetologia, escoradas em três pilares fundamentais: a insulinoterapia, a educação do diabético e o trabalho social. Foram em grande medida estes os conhecimentos que Ernesto Roma assimilou durante o período de estágio nos EUA e com eles veio a estabelecer a diabetologia social em Portugal.
A organização da diabetologia social em Portugal correspondeu historicamente a um processo de simbiose entre a diabetologia, enquanto área de intervenção multidisciplinar, e o trabalho social, enquanto sustentáculo do processo de tratamento e de educação médica. Nos inícios do século XX, a diabetologia passou a ser uma nova área médica reconhecida internacionalmente, mas do domínio da Clínica Geral ou da Medicina Interna. Em Portugal, a diabetes era tratada sobretudo pelos Internistas, antes de ser anexada pela especialidade Endocrinologia-Nutrição, esta reconhecida somente pela Ordem dos Médicos em 1956 (
No que diz respeito à diabetologia social em Portugal, sabemos que o seu pioneiro e mentor foi o médico Ernesto Galeão Roma (1887-1978). Ensinando e exercendo clínica no Hospital de Santa Marta desde 1913, Ernesto Roma foi incitado por Carlos Bello de Morais, médico e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, para se especializar em ética nos Estados Unidos da América com Richard Cabot. Mas quando chegou a Boston em dezembro de 1922, já com 35 anos de idade, o que viu e assistiu fizeram-no desistir dos projetos ligados à ética, para se dedicar à diabetologia, que acabara de nascer pela mão de Joslin Elliott (
O ponto de viragem decisivo no tratamento da diabetes foi a descoberta e introdução da insulina, o que tinha ocorrido entre os finais de 1921 e os inícios de 1922, e consagrado mundialmente em 1923 com a atribuição do Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina aos responsáveis pela descoberta. O jovem médico Ernesto Roma começou o seu estágio em Boston, no epicentro de uma revolução terapêutica e assistiu ao desenvolvimento da diabetologia e do trabalho social, o que veio a influenciar decisivamente a sua carreira em Portugal.
Determinado a dedicar-se à diabetologia, Ernesto Roma regressou em outubro de 1923 e foi, presumivelmente, o primeiro médico no país a utilizar a insulina
[…] voltei a Portugal, desligando-me do Prof. Cabot […] aqui chegado, iniciei a prática do tratamento pela insulina, no serviço do Prof. Belo de Morais, com quem trabalhei muito tempo, que no meu regresso me recebeu muitíssimo bem, e me colocou logo a trabalhar no seu sector do Hospital de Santa Marta. Aí comecei então a fazer o tratamento da diabetes com o novo medicamento, prática que tornei extensiva ao consultório do Prof. Belo de Morais. E note que os doentes afluíam sem qualquer espécie de publicidade; eram eles próprios que faziam propaganda uns junto dos outros
Numa época em que os artigos publicados em periódicos médicos sobre diabetologia eram raros em Portugal, apareceram a partir de 1924 alguns artigos publicados na revista portuguesa «Lisboa Médica», inaugurada nesse ano e editada pelo Hospital de Santa Marta, o mesmo em que Ernesto Roma trabalhava. Logo em 1924 o médico e professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Pulido Valente publicou um conjunto de artigos intitulados «Lições sobre a diabetes» (
Em 1925, o médico e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Fernando da Fonseca
Como mencionaram
A primeira comunicação e publicação conhecida de Ernesto Roma sobre o tratamento da diabetes pela insulina só veio a acontecer entre 1925-1926. Aquando da comemoração do centenário da criação da Régia Escola de Cirurgia de Lisboa, Ernesto Roma, então Chefe de Clínica do Hospital de Santa Marta, foi convidado a dar uma conferência, tendo escolhido como tema o tratamento do coma diabético, conferência essa que foi publicada em 1926.
O seu papel na diabetologia portuguesa vincou-se por outra via que não a hospitalar e fazendo recurso aos conceitos e conhecimentos que aprendeu e transferiu para a realidade portuguesa. Não hesitando em designar a insulina de “uma das mais maravilhosas descobertas da Humanidade” (
Estas realizações só vieram a ser possíveis a partir de 1926, aquando da fundação da Associação Portuguesa dos Diabéticos Pobres (APDP), que foi muito mais do que uma instituição de assistência. Na prática a APDP funcionou como a incubadora da diabetologia social em Portugal, permitindo a Ernesto Roma pôr em prática os princípios do tratamento moderno da dia betes - insulinoterapia e educação dos diabéticos - e promover o trabalho social que aprendera com Cabot.
Na génese da fundação da APDP esteve a constatação, por parte de Ernesto Roma, de que existia um número significativo de diabéticos incapazes de suportarem financeiramente o seu tratamento, e por isso impedidos de acederem a uma educação conveniente neste campo
“uma instituição humanitária e de beneficência, que tem por fim proteger e socorrer, a dentro da sua esfera de acção, os doentes diabéticos , de qualquer sexo, edade e condição, reconhecidamente pobres e como tal careçam de auxílio extranho, quer sejam ou não sócios d’esta Instituição, e combater por todas as maneiras possíveis a diabétes e as suas consequências”
Como mencionamos a questão da insulinoterapia era premente. Desde logo a APDP se propôs a fornecer aos diabéticos pobres a insulina que precisavam e outros produtos, alimentares ou não, para um tratamento mais eficaz da doença
Consequência do aumento de assistidos foi o aumento de unidades de insulina utilizadas na terapêutica, passando em cinco anos de 20 mil unidades para 922 mil unidades (ver
Anos | N .º de doentes assistidos | Unidades de insulina utilizadas |
---|---|---|
1927-1928 | 14 | 20.000 |
1928-1929 | 85 | 230.000 |
1929-1930 | 204 | 640.000 |
1930-1931 | 274 | 720.900 |
1931-1932 | 410 | 922.000 |
Os custos com a insulina foram mitigados pela ajuda de algumas casas farmacêuticas sediadas em Lisboa, que vendiam a insulina a um preço especial à associação, designadamente o Instituto Pasteur de Lisboa, que comercializava a insulina americana da marca Lilly, e a Coll & Taylor Lda., que comercializava a marca inglesa A.B.
A ajuda à APDP fazia-se ainda pela filiação à associação, na qualidade de sócio contribuinte ou sócio protetor (instituições), com o pagamento de uma quota mensal, mas igualmente com os donativos ocasionais de pessoas e instituições interessadas e solidárias com a causa da luta contra a diabetes. Para além de donativos particulares, a APDP recebeu subsídios da Direção Geral da Assistência, do Governo Civil de Distrito de Lisboa, da Manutenção Militar, da Companhia Portuguesa de Higiene, entre outros
Outro âmbito de atuação da APDP foi na área da educação dos diabéticos. Seguindo os preceitos aprendidos em Boston, Ernesto Roma pôs em prática um modelo de educação do diabético que aprendera em Boston. Ao que se sabe Ernesto Roma já dava palestras aos seus doentes da clínica privada desde que regressara dos EUA
As palestras, designadas de “consulta de educação médica e dietética”, realizavam-se às quartas-feiras às 18h30 e tinham a duração de uma hora, sendo os lugares ocupados mediante um sistema de senhas distribuídas antes da consulta. Entre os temas destacavam-se os princípios gerais da alimentação, noções básicas sobre calorias, hidratos de carbono, proteínas e gorduras, localização do órgão responsável pela doença, principais complicações e prevenção, coma diabético e sintomas, sopas para diabéticos, pratos principais e pratos do meio, etc.
Em 1931 na qualidade de Diretor Clínico da APDP, Ernesto Roma publicou um compêndio intitulado «Conselhos aos diabéticos», com a pretensão de educar e esclarecer com informações de base científica os diabéticos e seus cuidadores. Os conselhos permitiriam adotar o melhor plano de tratamento, saber como variar a dieta sem comprometer o estado de saúde, difundir os cuidados higiénicos para esta tipologia de doentes. Na prática o «Conselhos aos diabéticos» (
Mas, contrariamente à extensão da obra de Joslin, os «Conselhos aos diabéticos» de Ernesto Roma era um compêndio de 20 páginas, e mais 8 páginas de anexos, onde o autor enfatizava sobretudo a questão da dietoterapia. Houve um enorme cuidado na explicação da composição nutricional dos alimentos, na quantidade em peso de alimentos que podia ser inserida em cada refeição pelo diabético, na composição de dietas alimentares por cada dia da semana, medidas de higiene, interpretação dos sinais de coma diabético e precauções a tomar.
Em 1931 foi inaugurada uma publicação, que pretendia ser periódica, o «Boletim da Associação Protectora dos Diabéticos Pobres», de distribuição gratuita e com o objetivo de propagandear as ações e obra da APDP, veicular notícias, noticiar avisos e educar os leitores diabéticos (
Outra vertente muito vincada desta associação esteve ligada ao trabalho social que desempenhou. Para além do tratamento atualizado, da educação esmerada e do acompanhamento zeloso dos diabéticos, a APDP oferecia apoio em vários domínios, desde a instrução dos doentes pobres de acordo com o programa de palestras científico-dietéticas, ao ensino do método de análise da glicose nas urinas, à farmácia social, até aos protocolos mantidos com diversas instituições.
A APDP criou nos primeiros anos da sua existência um laboratório destinado à realização de exames clínicos e bromatológicos, o que resolveu a questão da gratuitidade das análises aos diabéticos pobres
Influenciado pelas ideias de profissionalismo dos trabalhadores sociais defendidas por Richard Cabot, Ernesto Roma pugnou pela formação de todos os funcionários a exercer funções na APDP, que incluía tantos os médicos como as rececionistas, que eram sujeitos a ações de formação técnica, tornando-os capazes de assegurar na sua área de atuação os melhores cuidados e atenção aos doentes. Fazia parte da formação dos funcionários, por exemplo, a assistência às palestras científico-dietéticas. Na década de 1940 foram contratados os serviços de uma enfermeira norte-americana, Sara Norton, que se dedicava exclusivamente à formação e atualização do pessoal de enfermagem e também de uma podologista alemã, Hilda Greenfontein, se responsabilizou pela formação dos médicos e dos enfermeiros nos cuidados e tratamento do pé diabético (
Houve ainda o cuidado de estabelecer um protocolo que beneficiasse os doentes carenciados. Em 1929-1930, a APDP acordou com os Hospitais Civis de Lisboa que receberia na sede os diabéticos em regime ambulatório encaminhados pelo hospital e em contrapartida os doentes assistidos pela APDP poderiam realizar exames no serviço de radiologia de forma gratuita
A génese da diabetologia social em Portugal, que institucionalmente foi promovida e desenvolvida no seio da APDP, não ocorreu antes de 1926. Nem a existência de estudos científicos nos meios académicos nem a introdução da insulina em Portugal no tratamento da diabetes foram suficientes
Foi o trabalho no terreno de especialistas de renome mundial como Elliott Joslin e Richard Cabot, com quem Ernesto Roma estagiou e aprendeu, que provaram ser insuficiente a terapêutica convencional perante uma doença crónica e incurável. Face à diabetes era necessário que o paciente aprendesse a viver de acordo com a sua condição e isso exigia uma educação em “banda larga”. A descoberta da insulina permitiu dar autonomia ao doente diabético e tratá-lo em ambulatório, mas para tal era necessário ensinar técnicas de autoinjecção e análise à urina, enquanto se ensinava a comer segundo uma aritmética própria e estrita e, de igual modo, se ensinava a interpretar os sintomas da doença.
Em 1926 foi fundada a APDP, a primeira deste género no mundo
Ernesto Roma é considerado o precursor na introdução da dietética e nutrição como ciências auxiliares da medicina e da diabetologia
Diabetologia social é um conceito derivado da medicina social. Esta surgiu historicamente ligada à necessidade de dar resposta a doenças criadas pelo industrialismo, como forma de aliar a medicina clínica e preventiva (
Veja-se os seguintes estudos: Bankston, John (2002),
Para o século XIX estão identificadas oito teses inaugurais das Escolas Médico-cirúrgicas de Lisboa e do Porto: Simões, José (1863), Observação de um caso de diabetes seguido de algumas considerações sobre a symptomologia, a anatomia pathologica e o tratamento (Tese Inaugural), Lisboa, Escola médico-cirúrgica de Lisboa [manuscrita]; Silva, Manuel (1868), Alguns phenómenos da diabete (Tese Inaugural), Lisboa, Typographia Universal de Thomaz Quintino Antunes; Centeno, Dominguez (1888), Contribuição para o estudo do coma diabético (Tese Inaugural), Lisboa, Typographia e Lithographia da Papelaria Progresso; Maia, Aires de Araújo (1873), Qual a origem da glycose na diabéte saccharina? (Tese Inaugural), Porto, Imprensa Popular de Mattos Carvalho & Vieira Paiva; Melo, André (1882), A Diabete Assucarada: seu esboço etiológico, pathogenico e therapeutico (Tese Inaugural), Porto, Typographia Occidental; Sousa, Joaquim (1892), Estudo sobre a pathogenia da diabete assucarada (Tese Inaugural), Porto, Typographia Occidental; Oliveira, Lucindo (1895), Breve estudo sobre a pathogenia da diabete (Tese Inaugural), Porto, Papelaria e Typographia de Manuel J. Alves d’Azevedo; Baptista, Alberto (1898), Breves considerações sobre a pathogenia da diabete (Tese Inaugural), Porto, Typographia Pereira.
Veja-se o importante estudo de Allen «Studies Concerning Glycosuria and Diabetes» (
«Os 50 anos da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal: Entrevista com o Dr. Ernesto Roma»,
Veja-se a propósito do estado sanitário em Portugal no primeiro quartel do século XX o trabalho de
Veja-se sobre este tema
Reconhecido como o primeiro diabetologista do mundo, Elliott P. Joslin destacou-se pelos cargos e filiações que seguidamente sintetizamos: Tenente-Coronel do Exército Norte-Americano, professor da
Ao nível europeu, presumivelmente o primeiro médico a fazer uso da insulina foi o espanhol Rosendo Carrasco y Formiguera, professor agregado de Nutrição na Universidade Autónoma de Barcelona, que em 1921-1922 também trabalhou na
«Os 50 anos da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal: Entrevista com o Dr. Ernesto Roma»,
Recorde-se que Pulido Valente foi um dos médicos e clínicos mais relevantes da sua geração em Portugal, sobretudo no domínio da medicina interna. Foi igualmente um intelectual português que se empenhou, para além da clínica médica e da investigação científica, notabilizou-se no ensino da medicina e teve uma posição política pública de oposição ao regime político encabeçado por António de Oliveira Salazar vulgarmente conhecido como Estado Novo (
Tal como Pulido Valente, também Fernando da Fonseca foi um prestigiado professor de Doenças Infetocontagiosas e de Propedêutica Médica e também tinha fortes convicções políticas de oposição ao Estado Novo (
Em 1925 utilizava-se na terapêutica da diabetes, no Hospital Escolar de Santa Marta, onde funcionava a Faculdade de Medicina de Lisboa, as marcas de insulina Merck, Léo, Byla, Toronto e Lilly (
«Os 50 anos da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal: Entrevista com o Dr. Ernesto Roma»,
APDP (1927),
APDP (1927),
APDP (1930),
APDP (1929),
AHSCML,
APDP (1929),
APDP (1930),
«Os 50 anos da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal: Entrevista com o Dr. Ernesto Roma»,
«Serviços Clínicos e Dietéticos»,
Deve sublinhar-se que o funcionamento da APDP terá de ser visto no âmbito da política assistencial do Estado Novo. Será oportuno o seu enquadramento e relacionamento com outras instituições e sua valoração pelo próprio Estado, o que pode constituir outro artigo resultante da investigação em curso. Sobre a política de saúde do Estado Novo vejam-se, por exemplo,
APDP (1929),
«Serviços Clínicos e Dietéticos»,
APDP (1930),
APDP (1931),
APDP (1932),
«Obituary Dr Ernesto Roma»,
«Obituary Dr Ernesto Roma»,