Este volume reúne os trabalhos apresentados num Colóquio que teve lugar na Universidade de Patras, em Dezembro de 2016, dedicado ao tema “Medicine and Paradoxography in the Ancient World”. Um dos objectivos deste volume é demonstrar que o diálogo entre medicina e paradoxografia é importante para se entender a complexidade da physis humana. Por isso, advoga-se a aproximação dos dois domínios, em vez da atitude mais normal de remeter a paradoxografia para uma área à margem da ciência e mais conotada com a ficção, a cultura popular ou o folclore. Na verdade, os textos médicos antigos recorrem aos thaumata e isso revela que é errado desvalorizar a paradoxografia, pois ela ajuda a perceber e a questionar a realidade, seja racional ou não.

G. Kazantzidis, o editor, não se limita a apresentar, no texto introdutório (“Introduction. Medicine and Paradoxography in Dialogue: Approaching thauma across Science and Fiction”), os nove estudos que integram este volume. Na verdade, descreve, com muita clareza, as várias questões que envolvem a complexa relação entre a medicina e a paradoxografia. Parece que o relato dos thaumata ou mirabilia não se enquadra na episteme, mas a forma como se perspectiva a physis torna essa diegesis mais próxima do texto científico do que se poderia pensar, como atestam, por exemplo, as várias referências a factos extraordinários ou maravilhosos no Corpus Hippocraticum. A tensão entre o conhecimento e o maravilhoso ocorre, por exemplo, na descrição da epilepsia, a ‘doença sacrada’. Além disso, o thauma pode fazer parte da relação entre médico e paciente, pois muitas vezes os pacientes são aconselhados a visitar templos sagrados para conseguir uma ajuda adicional. O próprio Templo de Asclépio pode ser vestígio de um mundo paralelo à medicina, questão que continua a merecer o interesse de vários estudidosos. Como G. Kazantzidis salienta, a descrição do corpo feminino revela a intersecção entre medicina e paradoxografia, desde o Corpus Hippocraticum, nomeadamente na tão conhecida teoria do ‘útero volante’. Galeno, aliás, reconhece o engenho hipocrático de combinar o rigor científico com o prazer (terpsis). Também em Aristóteles (ou pseudo-Aristóteles), Antígono de Caristo ou Plínio, podemos encontrar vários exemplos relacionados com a excepcionalidade do corpo feminino. Tendo em conta a evolução do conhecimento anatómico na medicina do período helenístico, com o contributo de Herófilo e Erasístrato, entre outros, o diálogo entre a medicina e a paradoxografia não diminuiu. Para uns, como o herofiliano Andreas, a narrativa de coisas maravilhosas estava pejada de falsidades, mas para outros, como Bolo de Mendés ou Nicandro, essa relação mantém-se. Neste âmbito, situa-se o interesse por fobias, uma área propícia à especulação, logo susceptível a recorrer a factos taumatológicos. Na verdade, a complexidade do ser corpo humano acaba por aproximar áreas como a teleologia e a mecânica, como sucede em relação ao processo de respiração. A admiração que o corpo humano suscita, enquanto manifestação do demiurgo para alguns, conduz, quase inevitavelmente, ao campo do maravilhoso e do irracional, incluindo a própria reflexão filosófica e retórica. Apresentado ou não como algo natural, a narrativa de coisas fantásticas e maravilhosas não deve ser desvalorizada para um melhor conhecimento do ser humano. Registe, ainda, uma advertência metodológica do Editor: não se devem ler o textos médicos como se fossem obras de historiografia. Por fim, as oito páginas de bibliografia da Introdução reúnem, em grande medida, os estudos mais relevantes sobre a temática do Volume e, por isso, para quem quiser começar a explorar esta temática trata-se de um apoio bastante útil. No entanto, como uma parte das referências surgem depois nos estudos que integram o volume, e o mesmo sucede de estudo para estudo, poderia o Editor ter optado por uma única listagem bibliográfica no final.

M. Gerolemou (“Techonological Wonder in Herodotus’ Histories”), aproveitando a espectacularidade do corpo humano, na sua dimensão física e também não-física, analisa como Heródoto aborda o efeito da medicina no corpo, enquanto techne exterior, e também o efeito de outros factores, como o clima, a alimentação ou o contexto social. Conclui o A. que o processo técnico descrito por Heródoto, com vista a conferir saúde ao corpo, partilha, em grande medida, da tese hipocrática.

Por sua vez, K. Oikonomopoulou (“Paradoxography and the pseudo-Aristotelian Problemata”) descreve a presença da noção de thauma nos Problemata, um texto que combina a reflexão sobre a natureza, a ciência e elementos paradoxográficos. Além de ser necessário aprofundar, como refere a A., a tradição dos problemata, é interessante reflectir sobre os limites, nem sempre bem definidos, entre a paradoxografia e a ciência.

Com base na poesia de Nicandro, F. Overduin (“In the Realm of Two-Headed Snake: Pragmatics and Aesthetics of Mirabilia in Nicander’s Theriaca and Alexipharmaka”) analisa a presença da paradoxografia na época helenística. Interessa ao A. interpretar os elementos taumatológicos no contexto da poesia didáctica. Nesse âmbito, salienta a relação entre a paradoxografia e a etiologia, bem como o facto de Nicandro, poeta e médico, incluir no discurso científico, ligado à farmacologia, os paradoxa. Assim, parece Nicandro querer demonstrar que o mundo não é apenas composto por elementos cuja veracidade se pode comprovar pelo recurso à metodologia científica, mas também por mirabilia.

L. Floridi (“Wondrous Healings in the Greek Epigrams (and their Parodic Counterparts”)) aborda um tema menos estudado: a partir de sete epigramas de Posidipo, os conhecidos iamatika, interpreta a relação entre medicina, religião e thaumata. Além disso, com base em três epigramas da Antologia Grega, identifica narrativas hiperbólicas de curas, com elementos paródicos e até satíricos, que abordam os limites da acções médica e da dimensão religiosa de factos miraculosos.

Os trinta e cinco capítulos dos Mirabilia de Flégon de Trales constituem a base do estudo de J. Doroszewska (“Beyond the Limits of the Human Body: Phlegon of Tralles’ Medical Curiosities”). A obra de Flégon de Trales constitui um excelente exemplo da relação entre paradoxografia e medicina, uma vez que apresenta várias curiosidades médicas e singularidades do corpo humano, nomeadamente casos de hermafroditas, alterações de sexo (androgynoi), homens que dão à luz, nascimento de seres monstruosos e nascimentos múltiplos em sucessivos partos, como o caso de uma mulher que deu à luz vinte crianças em quatro partos. Relacionados com a sexualidade, a anatomia, a fisiologia e a reprodução, os phaenomena descritos por Flégon desafiam, de facto, os limites do corpo humano e também a sua natureza.

Também o estudo de K. E. Shannon-Henderson (“Phlegons’s Paradoxical Physiology: Centaurs in the Peri Thaumasion”) é sobre a obra de Flégon de Trales, em particular sobre a natureza híbrida do Centauro. Pela sua fisiologia complexa e extraordinária, não apenas a paradoxografia se interessou por esses seres, mas também o discurso científico. Da forma como constrói o discurso sobre a realidade dos centauros, Flégon desafia também a forma como se olha para os limites da natureza humana e do próprio significado dos thaumata.

J. Lightfoot (“Galen’s Language of Wonder: Thauma, Medicine and Philosophy On Prognosis and On Affected Parts”) analisa, nos tratados De praecognitione e De locis affectis, a forma como Galeno concilia o discurso médico com a paradoxografia. Contextualizando a sua interpretação com o recurso ao thauma no corpus hippocraticum, por meio de thaumatopoioi e médicos, a A. realça a relação entre a medicina, a paradoxografia e a filosofia na construção do conceito de natureza humana.

No estudo de G. Petridou (“Literary Remedies and Rhetorical Prescriptions in Aelius Aristides: Medical Paradoxography or Common Practise”) sobressai, desde logo, o recurso a um autor que é, sobretudo, conhecido pela sua prática retórica: Élio Aristides. Com base em alguns exemplos dos Hieroi logoi, uma obra que reproduz as vivências religiosas, no templo de Asclépio, em busca da cura, a A. identifica as marcas da tradição e da Segunda Sofística na narrativa de Élio Aristides. Além disso, salienta o efeito terapêutico da literatura, da música ou da retórica, enquanto ‘rhetorical remedies’, pois é também um sinal da própria divindade, facto que coloca o texto literário num nível superior.

Por fim, M. Meeusen (“Unknowable Questions and Paradoxography in ps.-Alexander of Aphrodisias’ Medical Puzzles and Natural Problems”) dedica o seu estudo à obra Dúvidas médicas e problemas naturais, que a tradição atribui a Alexandre de Afrodísias, mas que provavelmente é espúrio. Na linha dos Problemata da tradição aristotélica, o referido tratado colige 228 problemata sobre medicina e ciência natural, que o autor divide entre os que são solucionáveis e os que não são. Inclui phaenomena paradoxográficos que desafiam a racionalidade e o conhecimento empírico, até porque ps.-Alexandre tinha também motivações religiosas e retóricas na abordagem dos problemata.

Em conclusão, este volume não tem como objectivo coligir estudos sobre todos os textos clássicos que denotam a relação entre medicina e paradoxografia. Como a maioria dos estudos aponta, há vários domínios a explorar nesta área temática e a própria metodologia de análise precisa de ser apurada. Estamos, sem dúvida, na presença de um conjunto de estudos com grande rigor científico e certamente, nos tempos próximos, este tema merecerá mais abordagens e novas problematizações temáticas. De facto, a análise deste corpus literário contribui para melhor percebermos os limites da natureza humana, assim como a própria evolução do pensamento científico.