A importação regular de penicilina para Portugal iniciou-se em Setembro de 1944 através da Cruz Vermelha Portuguesa. Até Junho de 1945 a importação e distribuição do medicamento foram controladas por esta instituição humanitária mas a partir desta data, com o aumento da produção mundial, a penicilina começou a ser importada por intermédio da indústria farmacêutica. No Arquivo da Universidade de Coimbra consultamos papeletas (processos individuais) de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra desde Setembro de 1944 até Agosto de 1946. A investigação realizada permitiu-nos recolher informações sobre a introdução da penicilina e sobre os primeiros tratamentos efetuados com o medicamento nestes hospitais. Com base nos dados recolhidos pretendemos, pelo presente artigo, mostrar como foi feita a receção da penicilina num hospital central de grande dimensão, um dos principais hospitais portugueses, saber a frequência com que era prescrita, as patologias mais comuns em que era empregue, as doses administradas, a posologia e o tempo de tratamento assim como os clínicos responsáveis pela sua prescrição.
The Portuguese Red Cross began to import of penicillin regularly following September 1944. Until June 1945, the humanitarian institution controlled the distribution of the antibiotic, subsequently, due to the increase in world production penicillin began to be imported by means of the pharmaceutical industry. We consulted and analyzed files of patients admitted to Coimbra University Hospitals between September 1944 and August 1946. These files, located in Coimbra University Archive, enabled us to collect information on the introduction of penicillin and on the first cases treated with the antibiotic at these hospitals. In the present paper, we aim to shed some light upon how penicillin was received in one of the main Portuguese central hospitals, the frequency with which it was prescribed, the most common diseases in which the antibiotic was utilized, the dosage administrated, the length of the treatment and the physicians responsible for prescribing the antibiotic.
A descoberta da penicilina e a sua introdução na terapêutica veio alterar por completo o prognóstico do tratamento das doenças infeciosas (Queijo,
Em Portugal, mesmo antes de ser utilizado, o medicamento era visto como «a última tentativa de salvação»
A penicilina começou a ser importada com regularidade para Portugal
A investigação conduzida no Arquivo da Universidade de Coimbra permitiu-nos recolher informações sobre a introdução da penicilina nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC)
As papeletas dos doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra encontram-se no Fundo Universitário, 3ª Secção, 4º Piso do Arquivo da Universidade de Coimbra
Fizemos também um cruzamento dos dados recolhidos no Arquivo da CVP com os dados das papeletas existentes no Arquivo da Universidade de Coimbra. Apurámos que nos Hospitais da Universidade de Coimbra foi administrada penicilina a 40 doentes até Julho de 1945 e que a CVP enviou para estes hospitais penicilina para o tratamento de 43 doentes, 41 das requisições existentes no Arquivo da CVP mencionam o doente para o qual o medicamento foi enviado e as 2 restantes referem somente que a penicilina foi enviada para os Hospitais da Universidade de Coimbra ou para o seu Diretor, o Dr. João Porto. Supomos que a penicilina referente a uma destas requisições, sem identificação, foi destinada a um doente internado na Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina de Coimbra. O doente foi tratado pelo Dr. Rui Clímaco em Dezembro de 1944 e o resultado das suas observações foi publicado, em 1946, na revista
Dos 40 doentes tratados com penicilina nos Hospitais da Universidade de Coimbra, até Julho de 1945, encontrámos em 29 uma correspondência exata nas requisições existentes no Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa.
As papeletas dos Hospitais da Universidade de Coimbra
As papeletas constituem uma importante fonte de informação sobre os doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra, no entanto, o seu preenchimento nem sempre foi completo o que dificultou a nossa recolha de dados. A constatação deste facto vai ao encontro das declarações proferidas pelo Prof. Doutor Cid dos Santos, em 1954, na Assembleia Nacional onde refere que «entre nós não existe qualquer tradição de arquivos clínicos … nada obriga a registar as histórias dos doentes e a sua evolução» (Santos,
O primeiro doente, que encontrámos, a quem foi administrada penicilina nos Hospitais da Universidade de Coimbra foi uma mulher de 25 anos, solteira, doméstica, residente em Porto de Mós, no distrito de Leiria, admitida em 4 de Novembro de 1944. O registo clínico da admissão refere que a doente foi admitida com caracter urgente para a seção de cirurgia, foi observada pelo Dr. Trajano Pinheiro que lhe diagnosticou uma «artrite aguda do joelho esquerdo» tendo-lhe prescrito, para administração na enfermaria, sulfamidas, 1 comprimido de 4 em 4 horas, cataplasmas, 5 centímetros cúbicos de óleo canforado e colargol. Na seção da papeleta «I - Registo Clínico da Saída» surge como doença principal diagnosticada uma «septicémia» e como tratamento prescrito «penicilina», «transfusão de sangue» e «sulfamidas». Na seção «II - Registo Clínico de Estada» verificamos que foi efetuada uma transfusão de sangue no dia 16 de Novembro de 1944, foram administradas 3 ampolas de cibazol
A
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
A
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
Por observação da
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
A localidade de residência dos doentes
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
O resultado do tratamento dos doentes aos quais foi administrada penicilina pode ser analisado através dos dados expostos na
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
Ao analisarmos a
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
Outro parâmetro analisado nos doentes admitidos e tratados com penicilina nos Hospitais da Universidade de Coimbra entre Setembro de 1944 e Agosto de 1946 foi o diagnóstico da doença. Na
* Dados retirados de papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra. As papeletas encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946.
As septicémias e as infeções ginecológicas
A penicilina surge como medicamento utilizado no tratamento de 670 doentes admitidos nos Hospitais da Universidade durante o período em análise, e em 182 destes casos o medicamento foi prescrito em associação com sulfamidas. As sulfamidas são mencionadas nas papeletas pelo seu nome genérico «sulfamidas» e «sulfatiazol» ou encontram-se prescritas pela denominação comercial «cibazol». Nas formas farmacêuticas utilizadas encontram-se as «empolas», que supomos destinarem-se à administração parentérica, e os comprimidos, para administração oral. Relativamente às «empolas» não é referida a posologia empregue, somente a dose total administrada que varia de acordo com a patologia diagnosticada, relativamente aos comprimidos a posologia habitualmente empregue é de um comprimido de duas em duas, três em três ou quatro em quatro horas, as doses totais administradas do medicamento nesta forma farmacêutica variam entre os dois comprimidos e os oitenta comprimidos. Quando analisamos as 1 999 papeletas em que houve administração de sulfamidas não associadas à penicilina verificamos que 28,1% da prescrição é referente a doentes aos quais foi realizada uma intervenção cirúrgica resultante de um diagnóstico de apendicite, úlcera gástrica, estenose do piloro ou hérnia, 20,3% da prescrição surge associada ao disgnóstico de patologias ginecológicas e obstétricas, em 10,9% de casos foram prescritas para o tratamento de feridas, abcessos, fleimões e erisipelas e em 7,5% de casos foram prescritas no tratamento de patologias respiratórias. Verificamos que nos casos em que as sulfamidas foram prescritas associadas a intervenções cirúrgicas a via parentérica, forma farmacêutica «empolas», foi a preferencial, e nas patologias ginecológicas e obstétricas o medicamento foi maioritariamente prescrito em comprimidos para administração oral. Os clínicos prescritores também foi um dos parâmetros analisados na consulta das papeletas dos doentes tratados com sulfamidas, em 49,2% dos casos não nos foi possível apurar o médico responsável pela instituição da terapêutica, este fato deveu-se ao preenchimento incompleto da papeleta ou à ilegibilidade do nome do clínico. Nas papeletas em que conseguimos identificar o médico verificámos que Bissaya Barreto foi responsável por 16,1% das prescrições de sulfamidas, José Bacalhau por 6,7% e Nunes da Costa por 3,4%, os clínicos Albertino Barros, António Matos Beja, Ibérico Nogueira, Maria Flora Vasconcelos, Novais e Sousa e Palmiro Batista foram responsáveis por 8,4% das prescrições de sulfamidas, as prescrições destes clínicos surgem associadas às especialidades de ginecologia e obstetrícia.
Na análise que efetuámos às papeletas dos doentes admitidos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, entre Setembro de 1944 e Agosto de 1946, tratados com penicilina também foram examinadas as doses totais administradas, a posologia empregue e o tempo de tratamento. As doses totais administradas, conforme esperado, variaram de acordo com o diagnóstico e com a gravidade dos sintomas não sendo possível estipular um padrão. A partir de Julho de 1945 a penicilina começou a ser importada pela indústria farmacêutica e a sua distribuição deixou de estar sobre o controlo da CVP
Outro parâmetro analisado nas papeletas dos doentes admitidos nos Hospitais da Universidade de Coimbra entre Setembro de 1944 e Agosto de 1945 foi a média dos dias de internamento. Verificámos que nos 20 896 doentes admitidos, durante este período, a média de dias de internamento foi de 31,3 dias, relativamente aos 670 doentes tratados com penicilina esta média subiu 32,6% situando-se em 41,5 dias de internamento, nos 1 999 doentes tratados com sulfamidas a média foi 39,7 dias de internamento e nos 18 227 doentes admitidos nos Hospitais da Universidade durante o período analisado a média de dias de internamento foi de 30,6 dias. Entendemos que estes dados suportam o conceito que a administração de penicilina estava reservada para casos muito graves, que mesmo após tratamento necessitavam de períodos de convalescença longos. Ao examinarmos mais pormenorizadamente a distribuição dos doentes, tratados com penicilina, em função dos dias de internamento verificamos que 10,6% dos doentes têm um período de internamento inferior a 5 dias e que neste grupo apenas 33,8% dos doentes se encontravam curados quando obtiveram alta. No extremo oposto temos 10% de doentes internados por um período superior a 100 dias, mas ao contrário do grupo anterior neste grupo 86,6% encontravam-se curados quando obtiveram alta. Embora estes resultados possam parecer estranhos somos da opinião que a taxa de insucesso observada no primeiro grupo é devida à gravidade da doença e ao fato da penicilina ser administrada como último recurso, não conseguindo nestes casos reverter o percurso da doença.
A consulta e a análise das papeletas dos doentes admitidos nos Hospitais de Universidade de Coimbra entre Setembro de 1944 e Agosto de 1946 permitiu-nos recolher informações sobre a introdução da penicilina nestes hospitais. Através dos dados examinados concluímos que a penicilina foi bem aceite e rapidamente incorporada no conjunto de medicamentos habitualmente prescritos nestes hospitais. Apesar das dificuldades inicialmente existentes na obtenção de penicilina os clínicos dos Hospitais da Universidade de Coimbra procuraram adquirir o medicamento para o tratamento dos seus doentes. Em carta enviada à Cruz Vermelha Portuguesa em 12 de Dezembro de 1944
O presente estudo resulta do projeto de investigação de doutoramento (bolsa SFRH/BD/62391/2009) concedida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia – FCT. A investigação integra-se no âmbito das atividades do Grupo de História e Sociologia da Ciência e da Tecnologia do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20 (financiado pela FCT por fundos nacionais do MEC — UID/HIS/00460/2013). Agradecemos à FCT o financiamento concedido; à Cruz Vermelha Portuguesa pelas facilidades concedidas para a consulta do seu arquivo histórico; e ao Arquivo da Universidade de Coimbra, pelas facilidades concedidas.
Embora o trabalho de Lesch
(Bud,
Carta enviada à Cruz Vermelha Brasileira em 27 de Março de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de Correspondência Expedida, 1944, Volume III, número de ordem 1368.
Oficialmente a situação de Portugal na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi uma posição de neutralidade. Pese embora esta neutralidade, Portugal tornou-se num país com uma forte atividade de espionagem e simultaneamente com uma intensa atividade diplomática. Portugal foi um país fundamental como local de passagem para uma enorme quantidade de fugitivos de guerra; alguns fixaram residência em Portugal, outros rumaram para outros países como seja os Estados Unidos da América. O historiador Luís Reis Torgal refere que após a Segunda Guerra Mundial, o Presidente português António de Oliveira Salazar “embora se tivesse esforçado depois da guerra, por explicar que a neutralidade portuguesa fora uma ‘neutralidade colaborante’, colaborante com os Aliados — o que na realidade aconteceu depois de 1942-43 —, é evidente a sua compreensão pela questão alemã” Luís Reis Torgal,
Sobre a constituição de comissões controladoras para a distribuição de penicilina veja-se “Penicillin: A Wartime Accomplishment”,
O volume 66, nº 1, de 2014 da revista Asclepio tem um dossier inteiramente dedicado ao 150º aniversário da Cruz Vermelha. Veja-se: “War, empire, science, progress, humanitarianism. Debate and practice within the international Red Cross movement from 1863 to the interwar period” com introdução de Jon Arrizabalaga; Guillermo Sánchez-Martínez; Jon Arrizabalaga e Guillermo Sánchez-Martínez, Leo van Bergen; e Francisco Javier Martínez-Antonio. Nestes estudos fica bem clara a natureza assistencial da Cruz Vermelha que era necessariamente a vocação da Cruz Vermelha Portuguesa.
No livro de atas da Junta Consultiva, localizado no Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa, é-lhe atribuído o nome de Junta Consultiva da Cruz Vermelha Portuguesa para a Distribuição de Penicilina em Portugal, no entanto em correspondência diversa é referida como Junta Consultiva para a Distribuição de Penicilina em Portugal ou Junta Consultiva de Distribuição de Penicilina em Portugal. Para evitar equívocos e de forma a simplificar a leitura futuramente iremos referir-nos a esta comissão como JCDPP.
Francisco Gentil (1878-1964) foi um dos mais prestigiados médicos portugueses do seu tempo. Foi cirurgião e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, da qual foi diretor. Com forte influência nos meios sociais e políticos da época, Francisco Gentil sendo o principal impulsionador do Instituto Português de Oncologia, fundado em 1923 com o nome de Instituto Português para o Estudo do Cancro. O Instituto Português tem o nome de Francisco Gentil.
Fernando da Fonseca (1895-1974) foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, sendo professor de Propedêutica Médica, e médico dos Hospitais Civis de Lisboa. Exerceu uma conhecida atividade clínica e deixou um conjunto vasto de publicações científicas. Estagiou nos Estados Unidos da América na área da oncologia. Exerceu, também, significativa atividade cívica criticando por vezes a atuação do Governo em matérias de assistência na doença, como aconteceu em 1947 numa reunião do Movimento da Unidade Democrática, movimento político de oposição ao governo de Salazar, ilegalizado em 1948. O Hospital Amadora Sintra tem o nome de Fernando Fonseca.
João Maia Loureiro (1901-1948) foi professor da Faculdade de Medicina de Lisboa tendo exercido clínica nos Hospitais Civis de Lisboa e no Instituto Português de Oncologia. Esteve por diversas vezes no estrangeiro a realizar estágios em diversas áreas da medicina. Dedicou-se com particular destaque no campo da saúde pública e da epidemiologia e às análises clínicas tendo sido entre outros cargos chefe de serviço e médico analista dos Hospitais Civis de Lisboa e diretor do Instituto Bacteriológico Câmara Pestana (Lisboa).
Ernesto Galeão Roma (1887-1978) foi um prestigiado médico português que teve particular interesse pela diabetes. Esteve nos Estados Unidos da América onde presenciou algumas das primeiras aplicações de insulina. Em Portugal, além da atividade clínica fundou em 1926 a Associação Protetora dos Diabéticos Pobres mais tarde designada por Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) e que depois de transformou em Fundação Ernesto Roma - APDP, uma instituição pioneira a este nível no plano mundial.
Parece-nos oportuno transcrever a nota de imprensa fornecida pelo Ministério da Economia: “Em virtude de estarem a chegar ao País, com certa regularidade as remessas de penicilina, entende a Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos, de acordo com a Direcção Geral de Saúde Pública, ser desnecessário continuar a observar as medidas em devido tempo tomadas sobre a venda deste medicamento, pelo que as mesmas são eliminadas a partir desta data, excepto no que respeita à sua aplicação, que só poderá fazer-se, como até aqui, sob prescrição e responsabilidade médica”,
Hospitais da Universidade de Coimbra era a designação dada a uma unidade hospitalar que se encontrava dividida por alguns edifícios na cidade de Coimbra. Na verdade, pode dizer-se que a designação de Hospitais da Universidade de Coimbra era dada ao hospital da Universidade de Coimbra, hospital aberto à população e que servia como hospital escolar. A sua origem remonta ao século XVIII quando com a reforma da Universidade de 1772 se entendeu que a Universidade de Coimbra deveria ter um hospital escolar. Foram reunidos num só hospital e em edifício próprio os três antigos hospitais da cidade: o Hospital da Convalescença, o Hospital da Conceição e o Hospital de S. Lázaro. Sobre este assunto veja-se João Rui Pita,
As papeletas de doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra encontram-se no Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário. Foram consultadas as caixas nº 254 – nº 277, referentes a doentes internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra e a quem foi dada alta entre Setembro de 1944 a final de Agosto de 1946, tendo sido analisadas 20 898 papeletas.
No Arquivo da Universidade de Coimbra (que é um arquivo histórico) encontra-se o espólio dos hospitais da cidade de Coimbra desde o século XVII. Neste arquivo encontramos documentação variada sobre o Hospital da Universidade de Coimbra e entre esta documentação os processos clínicos dos doentes (designados por papeletas). Nestes processos temos informação variada sobre o doente, o diagnóstico e a terapêutica que foi estabelecida. Também há a assinatura do médico. Contudo, nem sempre todos os processos estão preenchidos na sua totalidade. Por vezes há alguns que estão incompletos. A investigação em processos clínicos permite avaliar, entre outros elementos, o que era receitado na prática aos doentes internados. Trata-se de um valioso espólio documental muito importante para a história da farmácia mas também, entre outras áreas da medicina, muito importante para a história da terapêutica (neste caso medicamentosa).
As sulfamidas (cuja atividade antibacteriana foi descrita em 1935 por Gerhard Domagk) desempenharam um importante papel no desenvolvimento da terapia antimicrobiana mas a sua toxicidade e o aparecimento de fenómenos de resistência bacteriana condicionaram a sua utilização, o surgimento da penicilina com a sua quase ausência de toxicidade aliada a um forte ação antibacteriana tornaram-na no medicamento de primeira indicação no tratamento de infeções bacterianas. Com a introdução da penicilina na terapêutica (nos anos 40 do século XX) a utilização das sulfamidas diminuiu substancialmente. Da análise dos dados recolhidos das papeletas dos Hospitais da Universidade de Coimbra, para o período analisado, verificámos que houve uma prescrição superior de sulfamidas relativamente à penicilina. Este facto não é de estranhar visto a utilização das sulfamidas anteceder, em alguns anos, a utilização da penicilina e o custo associado ao seu tratamento ser substancialmente inferior ao da penicilina. Excluindo os casos em que a utilização da penicilina era considerada de indicação absoluta, o antibiótico encontrava-se reservado para casos graves e de resistência comprovada às sulfamidas.
Telegrama do Dr. João Porto, Diretor dos Hospitais da Universidade de Coimbra, de 05 de Dezembro de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de Correspondência Recebida, 1944, número de ordem de entrada 5714.
Telegrama do Dr. João Porto, Diretor dos Hospitais da Universidade de Coimbra, de 08 de Dezembro de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de Correspondência Recebida, 1944, número de ordem de entrada 5812.
A ausência de preservação dos arquivos de instituições de saúde portuguesas como hospitais, centros de saúde constitui um grave problema para a investigação em história da medicina, da farmácia ou de outra área das ciências e das profissões de saúde. Constatamos como já foi referido por investigadores espanhóis e para o caso de Espanha, que também em Portugal tem havido imensas perdas do património documental histórico-médico e histórico-farmacêutico. Nos últimos anos encerraram em Portugal diversos hospitais com espólio documental de grande valor e a preservação desse espólio, do nosso ponto de vista, não está a ser feita ou, na sua generalidade, pode não ser feita do melhor modo. No Arquivo da Universidade de Coimbra o património documental dos Hospitais da Universidade de Coimbra está preservado e catalogado até meados do século XX o que permite a realização de estudos histórico-sanitários. Também encontrámos em bom estado de conservação e de catalogação o Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa, em Lisboa, embora o património documental existente corresponda apenas a uma parte do espólio que já existiu. Também em instituições privadas encontramos em Portugal o mesmo problema de dificuldades de consulta ou de destruição de arquivos. Partilhamos, por isso, das preocupações e das sugestões feitas, por exemplo, por Esteban Rodriguez Ocaña (
As sulfamidas são mencionadas nas papeletas dos doentes admitidos nos Hospitais da Universidade pelo seu nome genérico “sulfamidas” e “sulfatiazol” ou encontram-se prescritas pela denominação comercial “cibazol”.
Papeleta de doente internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra número 4537. Arquivo da Universidade de Coimbra, 4º Piso, 3ª Secção, Fundo Universitário, caixa nº 256.
Através da consulta do documento: Comunicações à Comissão Central da Cruz Vermelha Portuguesa apresentadas na sessão de 18 de Outubro de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de atas da Comissão Central da Cruz Vermelha Portuguesa, 1944. Ficamos conhecedores do preço previsto (200$00), pela Cruz Vermelha Portuguesa, para o custo de cada ampola de 100 000 unidades de penicilina. No entanto quando consultámos o documento: Recibo emitido à Companhia Rádio Marconi a 18 de Dezembro de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa. Cruz Vermelha Portuguesa - Junta Consultiva de Distribuição de Penicilina em Portugal, Volume I, 1944 – 1945. Constatamos que na realidade cada ampola de 100 000 unidades de penicilina custava 230$00 e não 200$00 como foi inicialmente previsto. Em 1945, quando se iniciou a importação através da indústria farmacêutica, cada ampola de 500 000 unidades de penicilina custava 210$00 (cada 100 000 unidades custariam 42$00), veja-se, Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos (
Com o aumento da produção mundial de penicilina deixou de ser necessária a intervenção de comissões controladoras na sua distribuição e o seu custo diminuiu substancialmente. Conforme já tivemos oportunidade de referir quando a penicilina começou a ser importada e distribuída pela CVP o custo de 100 000 unidades do antibiótico era de 230$00. A partir de 1945, conforme foi referido anteriormente, o preço de venda ao público da penicilina diminuiu substancialmente. Podemos constatar este facto através do artigo “Dois assuntos” e do anúncio “Penicilina” publicados na revista
Circular do Grémio Nacional da Farmácias enviada à Farmácia Cruz Viegas a 13 de Julho de 1945. Centro de Documentação Farmacêutica da Ordem dos Farmacêuticos - Delegação Regional de Coimbra, Coimbra.
Fernando Baeta Bissaya Barreto Rosa (1886-1974), mais conhecido por Bissaya Barreto, formou-se em medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1911. Foi nomeado, no mesmo ano, Assistente Provisório e em 1916, Diretor da Clínica Terapêutica e Técnica Operatória dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Figura política relevante do Estado Novo (aderiu à União Nacional após a revolução de 28 de Maio de 1926 que havia de dar lugar à subida de Salazar ao poder) teve papel significativo em Portugal ao projetar obras de natureza social e hospitalares no distrito de Coimbra e na região centro de Portugal. Exerceu um importante contributo para a consagração do direito à Assistência Social na Constituição da República Portuguesa de 1911. Em 1930 fundou o Ninho dos Pequenitos, uma instituição dedicada à assistência infantil e onde o bem-estar da criança, em todas as suas vertentes, era uma prioridade. Enquanto Presidente da Junta Geral do Distrito de Coimbra (1927-1974) inaugurou em 1940 o Portugal dos Pequenitos e na dependência desta a Casa da Criança Rainha Santa Isabel e em 1958 criou a Fundação Bissaya Barreto dedicada a dar continuidade à sua obra de assistência social. Sobre este médico veja-se, por exemplo, Jorge Pais de Sousa (
Luís Augusto de Morais Zamith (1897-1983) doutorou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1920. Exerceu vários cargos nos Hospitais da Universidade. Em 1950 foi eleito Presidente da Sociedade Portuguesa de Urologia, especialidade onde realizou clínica e importantes trabalhos de investigação. Realizou pesquisas sobre o tratamento de doenças venéreas. Em colaboração com Ângelo da Fonseca (1872-1942) publicou estudos sobre a utilização da anestesia epidural, trabalhos pioneiros no emprego desta anestesia nos Hospitais da Universidade de Coimbra. Veja-se o seu processo de professor no Arquivo da Universidade de Coimbra: DIV-S1ªD-E9-T3 e também o estudo
João Maria Porto (1891-1968), doutorou-se em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1920. Figura muito ligada aos meios católicos, foi Presidente da Associação de Médicos Católicos Portugueses. Foi Diretor de Clínica Pediátrica, Diretor de Clínica de Moléstias Infeciosas (1941), Diretor da Faculdade de Medicina (1936-1941), Diretor dos Hospitais da Universidade (1942-1950), interessou-se muito pela cardiologia, tendo-se notabilizado no campo da medicina interna. Foi Diretor da revista
Não é possível fazer a relação entre o prestígio do médico e a capacidade de atração de doentes por parte daquele. No entanto, os Hospitais da Universidade de Coimbra eram uma referência nacional. No centro de Portugal e captavam os doentes das regiões circundantes de Coimbra.
Não foram neste caso incluídas as doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis, visto estas doenças serem de “indicação relativa”, para a administração do antibiótico ficando a penicilina reservada para as doenças de “indicação absoluta” (expressões utilizadas no relatório de Chester S. Keefer).
Chester Scott Keefer (1897 – 1972), medico, durante a II Guerra Mundial foi nomeado presidente do National Research Council’s Committee on Chemotherapeutics and Other Agents, sendo responsável pela distribuição de penicilina nos EUA.
Em Junho de 1945, com o aumento da produção mundial, as quantidades de penicilina disponíveis já eram suficientemente elevadas para que o antibiótico pudesse ser vendido sem restrições. A intervenção de comissões controladoras na sua distribuição deixou de ser necessária e a 12 de Junho de 1945 a Junta Consultiva da Distribuição da Penicilina em Portugal foi extinta. Veja-se: Carta enviada à Junta Consultiva para a Distribuição da Penicilina em Portugal em 12 de Junho 1945. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa. Cruz Vermelha Portuguesa - Junta Consultiva de Distribuição de Penicilina em Portugal, Volume I, 1944 – 1945. A penicilina começou então a ser importada como medicamento. Por deliberação da Comissão Reguladora dos Produtos Químicos e Farmacêuticos (entidade reguladora do setor farmacêutico), o antibiótico só poderia ser vendido em farmácias mediante a apresentação obrigatória de uma prescrição. Alguns dos primeiros laboratórios importadores e distribuidores foram o Instituto Pasteur de Lisboa, a Farmácia Barral e o Laboratório Sanitas com delegações em Lisboa, Porto e Coimbra e a Sociedade Industrial Farmacêutica e Santos Mendonça Ld.ª em Lisboa. Em 1947, a penicilina começou a ser importada como matéria-prima e em 1948, após a instalação da primeira câmara asséptica, foram introduzidos no mercado português as primeiras especialidades farmacêuticas com penicilina manipuladas em Portugal (Penicilina - sal sódico ou potássico, Procaína penicilina com penicilina cristalizada). Só mais tarde, em 1966 surgiu a primeira fábrica de penicilina do país, em Matosinhos – Sociedade Produtora de Leveduras Seleccionadas e Micofabril, a primeira fazendo a biossíntese, extração e refinação da penicilina enquanto a segunda transformava a matéria-prima em especialidades farmacêuticas, embalando-as e lançando-as no mercado.
Carta dos Hospitais da Universidade de Coimbra, de 12 de Dezembro de 1944. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de Correspondência Recebida, 1944, número de ordem de entrada 5904.
Carta enviada para os Hospitais da Universidade de Coimbra, em 19 de Janeiro de 1945. Arquivo da Cruz Vermelha Portuguesa em Lisboa, Livro de Correspondência Expedida, 1945, Volume I, número de ordem 323.